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Lei 15.177/25: a tensão entre igualdade de gênero e autonomia corporativa

A promulgação da lei 15.177/25 em 23 de julho inaugura uma nova era regulatória no direito societário brasileiro, estabelecendo pela primeira vez na legislação pátria a obrigatoriedade de reserva mínima de 30% (trinta por cento) das vagas de membros titulares para mulheres em conselhos de administração de empresas estatais e suas controladas, tal medida, ainda que facultativamente, se estende às companhias abertas, representando um marco na promoção da equidade de gênero e, simultaneamente, um ponto de inflexão na relação entre intervenção estatal na engrenagem corporativa.

Para compreender a magnitude desta transformação normativa, torna-se necessário examinar o contraste entre o regime jurídico precedente e as novas determinações legais, sendo digna a análise do arcabouço legal anterior, consubstanciado na antiga redação da lei 6.404/76 (lei das sociedades anônimas), a qual operava sob o paradigma da discricionariedade acionária absoluta na composição dos órgãos administrativos, onde a escolha dos conselheiros obedecia exclusivamente aos critérios estabelecidos pelos detentores do capital, buscando, em tese, métricas de competência técnica, experiência setorial e alinhamento com a estratégia corporativa da companhia.

Contudo, a nova legislação rompe com a discricionariedade subjetiva ao introduzir um imperativo legal que subordina, o que antes havia autonomia decisória total dos acionistas, a um critério social específico, havendo delimitação expressa em seu art. 2º às empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, junto a um regime jurídico dual onde a imposição normativa pública combina com a adesão voluntária das companhias abertas.

Torna-se particularmente relevante a alteração promovida no art. 133 da lei das sociedades anônimas, que passa a exigir transparência quantitativa sobre políticas de equidade, trazendo obrigatoriedade na divulgação em relatório de administração de dados segregados por sexo sobre contratação, ocupação em diferentes níveis hierárquicos e estruturas remuneratórias, ou seja, um paradigma de accountability que transcende a mera conformidade formal.

Tamanha transformação legislativa encontra sua justificativa em dados que revelam uma assimetria representativa alarmante no cenário corporativo brasileiro a partir do mais recente relatório do IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, divulgado em 2025, expõe uma realidade ainda mais preocupante: apenas 10% dos relatórios de sustentabilidade analisados fazem menção ao selo WOB – Women on Board, indicativo de que uma parcela ínfima das empresas brasileiras de capital aberto possui pelo menos duas conselheiras efetivas em seus conselhos de administração.

A magnitude desta disparidade torna-se evidente quando se observa que, em uma amostra de 296 relatórios de 209 empresas dos anos de 2021 e 2022, foram identificadas apenas 32 citações relacionadas ao selo WOB. Mais revelador ainda é o desempenho diferenciado por tipo de controle acionário: empresas estatais apresentam 0% de menções ao selo, empresas de capital estrangeiro registram apenas 0,6% das citações, enquanto empresas privadas, mesmo liderando esta métrica, alcançam singelos 1,4% das referências à diversidade de gênero no conselho.

Esta sub-representação assume contornos paradoxais quando contrastada tanto com indicadores educacionais quanto com práticas organizacionais nas demais hierarquias corporativas, ou seja, enquanto 100% dos relatórios analisados abordam políticas de DE&I – diversidade, equidade e inclusão para colaboradores em geral, com destaque para iniciativas relacionadas a gênero e raça, essa preocupação simplesmente se evapora quando se trata dos níveis decisórios mais elevados.

Não cabendo ao aspecto de competência, considerando que as mulheres constituem majoritariamente os graduados em ensino superior no país e apresentam desempenho acadêmico superior em diversas áreas do conhecimento, a disparidade entre capital educacional feminino, presença reconhecida nas bases organizacionais e virtual ausência nos estratos decisórios corporativos sugere a persistência de barreiras estruturais que impedem a conversão da formação em ascensão hierárquica no âmbito da alta governança.

É neste contexto de invisibilidade quase absoluta que emergem os movimentos pela governança corporativa feminina, iniciativas que reconhecem não apenas a carência representativa, mas a contradição fundamental entre discurso e prática nos órgãos deliberativos das empresas brasileiras.

A governança corporativa, conceituada como o sistema pelo qual as empresas são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolve os relacionamentos entre acionistas, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle, e demais partes interessadas. Este sistema fundamenta-se em princípios essenciais como transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa – elementos que constituem os pilares da confiança entre empresa e sociedade e que são comprometidos pela falta de diversidade nos órgãos decisórios.

A deficiência na transparência sobre a composição dos conselhos é outro aspecto crítico revelado pelos dados do IBGC. Apenas 20% dos relatórios apresentam indicadores quantitativos na dimensão governança, incluindo métricas como “proporção de diversidade de gênero no conselho”. Entre empresas estatais e privadas, apenas 2,4% das citações se referem a indicadores quantitativos relacionados à diversidade nos conselhos. Esta opacidade não apenas dificulta o acompanhamento efetivo dos avanços, mas também impede a estabelecimento de metas realistas e a cobrança de resultados concretos.

Os movimentos pela inclusão feminina na governança corporativa fundamentam-se em evidências empíricas robustas que demonstram os benefícios multidimensionais da diversidade, associada à maior capacidade de identificação e mitigação de riscos, ampliação de perspectivas de mercado, aprimoramento dos mecanismos de controle interno e redução de comportamentos corporativos excessivamente arriscados. Essa fundamentação ganha ainda mais relevância diante da proximidade da implementação das normas IFRS S1 e S2, prevista para 2026, que exigirá das empresas das categorias A e B da CVM a divulgação de relatórios sobre riscos e oportunidades de sustentabilidade.

Do ponto de vista da governança corporativa, a presença feminina nos conselhos de administração contribui para o fortalecimento da função de supervisão e orientação estratégica, elementos centrais da boa governança. Esta contribuição é particularmente relevante no contexto brasileiro atual, onde o setor de energia elétrica emerge como única exceção positiva, sendo o único a reportar informações em todas as 17 categorias da dimensão governança corporativa, demonstrando que mudanças são possíveis quando há comprometimento genuíno com a transparência e a diversidade.

Diante deste cenário de invisibilidade quase total da diversidade de gênero na alta governança, emerge com ainda maior urgência a questão das externalidades que a implementação legislativa pode produzir no ambiente empresarial e na estrutura de governança corporativa.

No contexto específico da governança corporativa brasileira, onde a representação feminina nos conselhos é praticamente inexistente, a diversidade de gênero pode contribuir para o aperfeiçoamento de três dimensões fundamentais: a função de supervisão (oversight), a função de aconselhamento estratégico (advisory) e a função de networking.

Na dimensão supervisora, mulheres conselheiras demonstram maior independência na avaliação de propostas da diretoria executiva e maior propensão a questionar decisões que possam comprometer o valor de longo prazo da companhia, esta característica é particularmente relevante no contexto brasileiro, onde a função de fiscalização do conselho sobre a diretoria executiva constitui um dos mecanismos fundamentais de proteção aos acionistas e demais stakeholders.

Na função de aconselhamento, a diversidade de perspectivas enriquece as discussões estratégicas e amplia o leque de alternativas consideradas, contribuindo para decisões mais equilibradas e sustentáveis – um aspecto crítico em um ambiente corporativo que demonstra resistência estrutural à inclusão feminina nos níveis decisórios mais elevados.

Contudo, mesmo diante de toda a benesse advinda da governança corporativa equitativa, não se pode negar que a lei 15.177/25 suscita questionamentos fundamentais sobre a compatibilidade entre intervenção estatal e princípios constitucionais estruturantes da liberdade econômica,materializa-se no presente cenário uma tensão conceitual entre dois princípios constitucionais concorrentes: de um lado, o imperativo da igualdade substancial previsto no art. 5º da Constituição Federal, que legitima ações afirmativas destinadas a corrigir distorções históricas; de outro, o princípio da livre iniciativa, fundamento da ordem econômica brasileira inscrito no art. 170, caput, da Carta Magna, que assegura aos agentes econômicos a prerrogativa de estruturar suas organizações segundo critérios de eficiência e racionalidade empresarial.

O princípio da livre iniciativa, em sua dimensão substantiva, compreende não apenas a liberdade de empreender, mas também a autonomia decisória sobre a organização interna das atividades empresariais. Esta autonomia abarca, tradicionalmente, a discricionariedade na seleção de administradores e na definição de critérios de governança, desde que observados os parâmetros legais mínimos de capacidade e idoneidade. As sociedades anônimas, regidas pelo paradigma da impessoalidade patrimonial, operam tradicionalmente sob a égide da livre iniciativa, onde a alocação de recursos humanos nos órgãos deliberativos orienta-se pela maximização de valor aos acionistas.

A imposição de critérios representativos introduz uma dimensão redistributiva na organização das companhias que pode colidir com a racionalidade econômica correlata ao princípio da livre iniciativa. Esta contradição torna-se evidentemente mais contraditória quando consideramos que o fundamento constitucional da livre iniciativa pressupõe que as decisões empresariais devem ser tomadas pelos próprios agentes econômicos, com base em suas avaliações sobre eficiência e adequação aos objetivos societários.

Paralelamente, tal imposição questiona a própria natureza das sociedades de capital, caracterizadas fundamentalmente pela impessoalidade em suas atividades empresariais, onde o que verdadeiramente importa é o lucro e a vantagem econômica, sendo a primazia do capital sobre considerações subjetivas constituída como um postulado basilar que orienta toda a estrutura decisória para a maximização de valor patrimonial.

A nova redação legislativa composta pela criação de critérios para composição dos conselhos administrativos representa, nesta perspectiva, uma limitação diversa à autonomia decisória garantida, introduzindo elementos pessoais em um modelo societário concebido para operar sob a lógica da impessoalidade e da eficiência econômica.

Diante desta tensão principiológica, cabe examinar estratégias alternativas que busquem equalizar as assimetrias de gênero, sem comprometer os fundamentos da autonomia empresarial, cabendo como exemplo uma abordagem mais consonante com os fundamentos do livre mercado privilegiaria mecanismos indutivos em detrimento de imposições mandatórias.

O investimento estratégico em programas de desenvolvimento do empreendedorismo feminino, combinado com reformas estruturais no sistema educacional, poderiam produzir resultados mais sustentáveis e organicamente integrados à natureza empresarial das companhias.

Instrumentos como programas de mentoria executiva, linhas de crédito preferenciais para empreendedoras, incentivos fiscais para empresas que demonstram progressos mensuráveis em diversidade e investimentos em formação executiva especializada constituem alternativas que preservam a autonomia empresarial enquanto endereçam as assimetrias estruturais. A mudança cultural, embora processualmente mais lenta, tende a produzir transformações mais duradouras que decretos normativos. A internalização voluntária de práticas de diversidade, motivada por evidências de superior performance organizacional, geraria compromissos genuínos em contraposição à conformidade meramente formal.

Esta reflexão conduz à necessária síntese sobre os critérios que devem prevalecer na seleção de lideranças corporativas, prevalecendo a competência técnica, a experiência setorial relevante e a capacidade demonstrada de condução estratégica devem permanecer como critérios primordiais na seleção de conselheiros administrativos. A busca por representatividade de gênero constitui objetivo socialmente legítimo, mas sua materialização através de modificações legais que contradizem a natureza empresarial das companhias pode comprometer tanto a eficiência empresarial quanto a autenticidade da inclusividade corporativa.

Portanto, pode-se concluir que a lei 15.177/25 inaugura um capítulo significativo na evolução da governança corporativa brasileira, mas sua efetividade última dependerá da capacidade de promover mudanças substantivas sem comprometer os alicerces que sustentam a competitividade empresarial, tendo em vista que o verdadeiro teste desta legislação será sua aptidão para catalisar transformações culturais duradouras.

Artigo para o Migalhas.

 

Por: Laura Almeida, Advogada | Contratual & Societário.

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