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Made in Italy: A revolução jurídica na indústria da moda

O Made in Italy representa muito mais que uma simples etiqueta de origem – constitui um ativo estratégico de conhecimentos tradicionais e processos produtivos que forma verdadeiro patrimônio imaterial da nação italiana. Esta reputação coletiva, construída ao longo de décadas pela excelência da indústria da moda, enfrenta hoje ameaças que colocam em risco sua credibilidade no mercado global.

A degradação deste ativo “premium” impacta simultaneamente múltiplos stakeholders: consumidores através do engano, concorrentes leais pela concorrência desleal, trabalhadores através da precarização e o Estado italiano pela desvalorização de um ativo nacional estratégico. Por isso, as autoridades italianas aplicam sanções que consideram não apenas o dano direto ao consumidor, mas o potencial de contaminação sistêmica da reputação coletiva, reconhecendo que o Made in Italy constitui um bem público cuja preservação justifica intervenção regulatória intensificada.

O caso Giorgio Armani: Marco regulatório

Esta evolução conceitual materializa-se exemplarmente no caso envolvendo o Grupo Giorgio Armani, que representa um marco na jurisprudência administrativa italiana sobre práticas comerciais enganosas em cadeias produtivas globalizadas. O processo administrativo, procedimento PS12793, instaurado pela AGCM – Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato e concluído com sanção de aproximadamente 3,5 milhões de euros, evidencia a sofisticação crescente dos métodos de fiscalização da autoridade antitruste italiana.

A investigação revelou uma estrutura produtiva híbrida problemática: enquanto a marca mantinha comunicação institucional que busca a promoção de valores de sustentabilidade, ética laboral e autenticidade artesanal, simultaneamente terceirizava parcela significativa da produção de artigos de couro para fornecedores que empregavam trabalhadores imigrantes em situação irregular, descumprindo normas fundamentais de segurança ocupacional e direitos trabalhistas.

Evolução jurídica: Além da informação falsa

A fundamentação jurídica da decisão demonstra evolução interpretativa significativa, construída sobre múltiplos pilares normativos que expandem consideravelmente o conceito tradicional de prática comercial enganosa. A AGCM interpretou os arts. 21 e 22 do Codice del Consumo (D.Lgs. 206/05) de forma a abranger não apenas informações falsas explícitas, mas também omissões sistemáticas sobre condições produtivas que contradigam a narrativa corporativa veiculada.

Esta interpretação alinha-se com a diretiva 2005/29/CE sobre práticas comerciais desleais, mas vai além ao reconhecer que a mera ausência de controle efetivo da cadeia produtiva constitui-se como conduta enganosa quando a empresa constrói sua proposta de valor sobre alegações éticas.

O critério da “expectativa legítima do consumidor”

Particularmente inovador é o estabelecimento do critério da “expectativa legítima do consumidor”, segundo o qual empresas que adotam posicionamento premium baseado em valores éticos assumem ônus probatório invertido: devem demonstrar proativamente a conformidade de toda sua cadeia produtiva. Este critério representa mudança paradigmática, transferindo às empresas a responsabilidade de verificação, monitoramento e auditoria contínua de fornecedores.

Ainda mais significativo é o reconhecimento explícito de que práticas enganosas por empresas Made in Italy causam danos que transcendem a relação comercial individual, comprometendo a credibilidade sistêmica do selo e abrindo precedente para sanções majoradas com base no potencial de contaminação reputacional do patrimônio coletivo italiano.

Transformações no mercado de moda

O “desencanto informado” do consumidor

As repercussões deste endurecimento regulatório manifestam-se através de transformações profundas nos padrões de consumo, gerando o que a literatura especializada denomina “desencanto informado”. Este fenômeno catalisa comportamentos de hipervigilância cognitiva, onde consumidores previamente confiantes na heurística do Made in Italy desenvolvem práticas de verificação sistemática, recorrendo a fontes independentes de informação, rating agencies de sustentabilidade e plataformas de fact-checking.

Este processo eleva substancialmente os custos de transação e exige das empresas investimentos crescentes em transparência verificável, ao mesmo tempo que promove segmentação por valores, com consumidores values-driven demonstrando disposição para pagar prêmios significativos por produtos com autenticidade verificável.

Reconfiguração competitiva assimétrica

Paralelamente, observa-se reconfiguração assimétrica da arquitetura competitiva, com efeitos diferenciados sobre distintas categorias de players. Empresas com longo histórico Made in Italy enfrentam expectativas mais elevadas e escrutínio intensificado, mas possuem maior capacidade de investimento em sistemas de compliance e auditoria.

Paradoxalmente, sanções como a aplicada à Giorgio Armani podem fortalecer sua posição competitiva de longo prazo ao forçar investimentos em transparência que criam barreiras à entrada. Simultaneamente, novas empresas enfrentam custos de entrada significativamente majorados pela necessidade de implementar sistemas robustos de due diligence desde o início das operações, embora possam capitalizar sobre ceticismo dirigido a incumbentes através de estratégias de “transparência nativa”.

Padrões operacionais rigorosos

A operacionalização jurídica desta evolução manifesta-se através de padrões rigorosos estabelecidos pela jurisprudência da AGCM, que aplica consistentemente o critério da substância sobre forma, exigindo que empresas apresentem alinhamento efetivo entre comunicação institucional e práticas operacionais através de evidências verificáveis: certificações independentes, auditorias de terceiros, sistemas de monitoramento contínuo e mecanismos de correção de não-conformidades.

Complementarmente, o princípio da transparência vivo e ativo opera uma inversão fundamental do ônus probatório, não cabendo apenas aos órgãos reguladores ou consumidores comprovarem a falsidade das alegações empresariais – sejam publicitárias ou comunicações internas -, mas às próprias empresas demonstrarem proativamente sua conformidade durante toda a cadeia produtiva.

Esta mudança estrutural gera incentivos poderosos para investimentos substanciais em sistemas robustos de due diligence e compliance, transformando o monitoramento contínuo da cadeia produtiva em imperativo operacional indispensável para a manutenção da legitimidade corporativa.

Escolhas estratégicas para a indústria

Estas transformações impõem às empresas escolhas estratégicas fundamentais entre integração vertical – oferecendo maior controle, mas implicando maiores custos – e terceirização com due diligence intensificada – permitindo maior flexibilidade, mas elevando riscos regulatórios.

Simultaneamente, organizações que anteciparem exigências regulatórias através de investimentos proativos em transparência e sustentabilidade construirão vantagens competitivas sustentáveis e barreiras à entrada para concorrentes menos preparados, transformando compliance de custo operacional em diferencial estratégico

O futuro do Made in Italy

O caso Giorgio Armani representa, portanto, um marco na evolução regulatória italiana, sinalizando que a tolerância às práticas incompatíveis com os valores proclamados pelo Made in Italy tornou-se praticamente nula. As empresas devem compreender que a manutenção da legitimidade de seus produtos requer investimento contínuo em transparência, controle da cadeia produtiva e alinhamento efetivo entre discurso e prática.

Para o sistema jurídico italiano, o fortalecimento da fiscalização sobre práticas comerciais enganosas representa não apenas proteção ao consumidor individual, mas preservação de um patrimônio nacional de incalculável valor econômico e cultural.

O futuro do Made in Italy dependerá, consequentemente, da capacidade das empresas de reinventarem seus modelos operacionais, integrando autenticidade, transparência e responsabilidade socioambiental como pilares indissociáveis de suas estratégias corporativas. A credibilidade do Made in Italy constitui bem coletivo que transcende interesses empresariais particulares, exigindo abordagem sistêmica que reconheça a interdependência entre legitimidade individual e reputação coletiva.

Somente através desta compreensão integral será possível preservar e potencializar esse extraordinário ativo imaterial italiano, já secular, no mercado global do século XXI, onde autenticidade verificável tornou-se não apenas expectativa do consumidor, mas imperativo legal incontornável.

 

Para o Migalhas.

Por: Laura Almeida, Advogada | Contratual & Societário.

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