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Reforma tributária: Novo capítulo estratégico para a moda brasileira

A promulgação da EC 132/23 e sua regulamentação pela LC 214/25 inauguraram uma nova era no sistema tributário brasileiro, estabelecendo profundas transformações que reverberam diretamente sobre a indústria de confecções nacional. A instituição do IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, da CBS – Contribuição Social sobre Bens e Serviços e do IS – Imposto Seletivo representa a mais significativa reforma fiscal das últimas décadas no país.

O setor de confecções da moda, caracterizado por sazonalidade intensa, ciclos produtivos acelerados, margens operacionais reduzidas e complexas cadeias de suprimento globais, historicamente onerado por carga tributária de até 40% do valor final dos produtos, encontra-se diante de cenário de incertezas e oportunidades sem precedentes. Com aproximadamente 170 mil empresas formais, sendo 90% de micro e pequeno porte, representando 2,5% do PIB nacional e empregando mais de 1,5 milhão de trabalhadores formais, o setor constitui pilar da economia brasileira.

I. Das alterações estruturais no sistema tributário

1.1. O novo paradigma tributário

A reforma promoveu substancial modificação no arquétipo constitucional da tributação sobre o consumo. A substituição dos tributos federais (PIS, Cofins e IPI), estadual (ICMS) e municipal (ISS) pelos novos IBS e CBS representa a adoção do modelo de IVA – Imposto sobre Valor Agregado, alinhando o sistema brasileiro aos padrões internacionais.

Esta transformação visa eliminar a cumulatividade tributária que historicamente onerava as cadeias produtivas complexas da moda, desde a produção de fibras até a comercialização no varejo, passando por tecelagem, tinturaria, estamparia, confecção e acabamento. Uma única peça pode envolver diversos fornecedores: produtores de fibras, fábricas de tecidos, empresas de beneficiamento, confecções, estamparias, bordadeiras e distribuidores, cada um anteriormente sujeito à tributação em cascata.

1.2. Tributação no destino

A adoção do princípio da tributação no destino representa mudança paradigmática. Sob a nova sistemática, a tributação incidirá exclusivamente no local de consumo final, eliminando a “guerra fiscal” e proporcionando maior segurança jurídica nas operações interestaduais. Para a indústria da moda, que concentra produção em estados específicos (Santa Catarina, São Paulo e Ceará) mas distribui nacionalmente, esta alteração promove significativa simplificação operacional.

II. Das alterações no Simples Nacional: Ampliação do conceito de receita bruta

A LC 214/25, através dos arts. 516 e 517, alterou substancialmente o conceito de receita bruta para enquadramento no Simples Nacional, incorporando as “demais receitas da atividade ou objeto principal”, ampliando o escopo de receitas computáveis para verificação do limite de R$ 4.800.000,00.

A questão é particularmente sensível no setor da moda, onde empresas frequentemente auferem receitas sazonais concentradas, rendimentos de licenciamento de marcas, royalties, vendas de equipamentos usados, sublicenciamento de espaços comerciais, e outras receitas que podem ser enquadradas como “atividade principal” dependendo da interpretação fiscal.

A expressão “demais receitas da atividade ou objeto principal” gera insegurança jurídica para empresas que auferem receitas de serviços de desenvolvimento de coleções, consultoria em moda, locação de equipamentos, venda de moldes, cursos de capacitação, eventos promocionais e desfiles. Empresas que operam com licenciamento de marcas ou prestam serviços de design podem enfrentar dificuldades para determinar se essas receitas integram sua “atividade principal”, considerando a natureza híbrida entre produção, prestação de serviços e propriedade intelectual.

A LC 214/25 introduziu significativa assimetria no aproveitamento de créditos tributários. Pessoas jurídicas do regime regular poderão apropriar créditos de IBS e CBS proporcionalmente ao valor recolhido pelas empresas simplificadas, limitando-se ao percentual diferenciado do Simples Nacional.

Esta limitação cria desvantagem competitiva estrutural, uma vez que grandes redes varejistas tendem a privilegiar fornecedores que proporcionem aproveitamento integral de créditos. No setor da moda, onde a pressão por margens competitivas é constante e margens operam entre 15% a 25%, esta assimetria pode ser decisiva na escolha de fornecedores.

III. Do regime híbrido como alternativa estratégica

A reforma facultou às empresas do Simples Nacional a opção pelo “regime híbrido”, permitindo apuração e recolhimento de IBS e CBS conforme regras do regime regular, mantendo os demais tributos sob sistemática simplificada. Esta inovação visa mitigar os efeitos da assimetria de créditos.

A opção pelo regime híbrido acarreta substancial complexidade operacional: emissão de documentos fiscais com destaque específico de IBS e CBS, manutenção de escriturações segregadas e cumprimento de obrigações acessórias próprias do regime regular para estes tributos.

Para empresas inseridas em cadeias produtivas complexas ou que atendem grandes varejistas (magazines, redes de departamento e plataformas de e-commerce), a opção pode representar vantagem competitiva decisiva. É fundamental análise casuística considerando modelo de negócio: produção própria ou terceirizada, mercado B2B (Business to Business) ou B2C (Business to Consumer), sazonalidade pronunciada, e capacidade administrativa para lidar com complexidade adicional durante períodos de alta demanda.

IV. Dos desafios no período de transição

O período de transição (2026-2032) impõe operação simultânea sob dois regimes tributários distintos. Esta dualidade representa desafio sem precedentes para setor caracterizado por estruturas administrativas enxutas, alta rotatividade de produtos (lançamentos mensais ou semanais no fast fashion), e necessidade de resposta rápida às tendências.

Para setor que opera com ciclos produtivos acelerados (15 a 30 dias da concepção às lojas), a complexidade adicional pode comprometer a agilidade operacional fundamental para competitividade. A situação é agravada pela sazonalidade, onde períodos de alta demanda (Black Friday, Natal, Dia das Mães, volta às aulas) concentram grande volume de operações em janelas temporais reduzidas.

A manutenção simultânea de regimes distintos suscita questionamentos quanto aos princípios constitucionais da isonomia e capacidade contributiva, demandando especial atenção às garantias constitucionais do contribuinte, particularmente quanto à segurança jurídica.

V. Das oportunidades de modernização

5.1. Alinhamento aos padrões internacionais

A adoção do modelo IVA posiciona a indústria brasileira em condições de maior competitividade internacional, crucial para setor que enfrenta intensa concorrência de produtos asiáticos e busca expandir exportações. A transparência tributária facilitará negociações com buyers internacionais e permitirá uma precificação mais competitiva no mercado global.

5.2. Previsibilidade tributária

A unificação de alíquotas proporciona maior previsibilidade para planejamento tributário. Para setor caracterizado por sazonalidade intensa, volatilidade de demanda influenciada por tendências efêmeras, e necessidade de investimentos antecipados em coleções com retorno incerto, esta previsibilidade representa ferramenta valiosa, especialmente para empresas que desenvolvem coleções com meses de antecedência.

5.3. Redução de custos de conformidade

A simplificação burocrática deve resultar em significativa redução dos custos de obrigações tributárias. Para setor onde pequenas e médias empresas destinam recursos desproporcionais à manutenção de estruturas de compliance em detrimento de investimentos em design, desenvolvimento, marketing e sustentabilidade, esta redução pode liberar recursos para atividades que efetivamente agreguem valor e competitividade.

VI. Das lacunas na reforma

6.1. Ausência de incentivos à sustentabilidade

A reforma perdeu a oportunidade de incorporar incentivos tributários para práticas sustentáveis na indústria da moda, setor reconhecido como segundo mais poluente do mundo, responsável por 10% das emissões globais de carbono e 20% da poluição industrial da água. A ausência de benefícios fiscais para empresas que adotem processos sustentáveis, materiais reciclados, economia circular ou logística reversa representa lacuna significativa.

O Brasil, com rica biodiversidade e potencial para fibras naturais sustentáveis (algodão orgânico, fibras de açaí, buriti, piaçava), poderia ter utilizado o sistema tributário como indutor de transformação sustentável, posicionando-se como referência mundial em moda sustentável.

6.2. Tratamento diferenciado

Diferentemente de outros segmentos, o setor têxtil não foi contemplado com tratamento tributário diferenciado, apesar de particularidades: alta intensidade de mão de obra (empregando predominantemente mulheres), relevante papel social (especialmente no Nordeste), vulnerabilidade à concorrência de importados com preços artificialmente baixos, e necessidade de constante inovação.

Conclusão

A reforma tributária representa marco divisório na tributação brasileira, com impactos relevantes para a indústria de confecções de moda. A transição demanda planejamento estratégico criterioso, considerando oportunidades de modernização e desafios operacionais específicos de setor caracterizado por alta dinamicidade, sazonalidade e pressões competitivas intensas.

Para empresas do setor, a reforma impõe revisão integral de estruturas tributárias, processos internos e estratégias comerciais. A opção pelo regime híbrido emerge como alternativa viável para manutenção da competitividade, especialmente para empresas inseridas em cadeias produtivas complexas.

É fundamental que o setor se organize através de entidades representativas para acompanhar a regulamentação complementar, assegurando que particularidades da indústria sejam consideradas pelos órgãos normativos.

Embora o período de transição apresenta desafios significativos para o setor habituado a estruturas administrativas enxutas e ciclos produtivos acelerados, a reforma oferece oportunidade única de modernização e alinhamento aos padrões internacionais. O sucesso dependerá da capacidade de adaptação de cada empresa e do comprometimento do setor com a transformação necessária.

A indústria de confecções de moda brasileira encontra-se em momento decisivo, onde as escolhas estratégicas dos próximos anos determinarão sua posição no cenário econômico nacional e internacional. A reforma tributária pode ser o catalisador necessário para elevação do setor a novo patamar de excelência, competitividade e sustentabilidade, permitindo que a criatividade e talento brasileiro na moda encontrem ambiente fiscal mais propício para florescer e competir globalmente.

 

 

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/443711/reforma-tributaria-novo-capitulo-estrategico-para-a-moda-brasileira

Por: Laura Almeida, Advogada | Contratual & Societário.

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